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Com poucos recursos, coletivos artísticos fazem a diferença em comunidades periféricas de Manaus

É por meio de uma fotografia, um freestyle em um rap, e até um grafite, que crianças e adolescentes vislumbram novas realidades em Manaus, no Amazonas. Diversos coletivos de arte têm transformado a realidade de comunidades periféricas da capital, cidade mais populosa da região norte com 2 milhões de habitantes, segundo o Censo 2022. 

“Antigamente, quando não existia o coletivo Arte Ocupa, era diferente. Hoje, a gente pode desenvolver a mente e o pensamento, pintando e fazendo o que realmente gosta de fazer, o que deixa a gente alegre”, relata Mosquitinho, de 12 anos, morador de uma comunidade de Manaus. A capital tem cerca de 50% dos domicílios localizados em aglomerados urbanos, segundo uma pesquisa de 2020 do IBGE, e foi considerada a 21ª cidade com maior violência no mundo pela ONG mexicana Seguridad, Justicia y Paz.

Idealizado pelos artistas visuais Sarah Campelo Monteiro e Marcelo Rufi, o coletivo foi criado em 2019 e teve como inspiração a arte, a coletividade, a multiplicação e como dito por Sarah: a rua.  “As crianças sabem se expressar sozinhas, na verdade, elas são mestres nisso. Sabem dizer o que querem, e nós apenas potencializamos esses discursos. Levamos a palavra de buscar respeito no seu território, e só depois, tentar mudar o mundo”, conta.  

Para a artista, a educação artística pode mudar realidades, traz autoconhecimento, incentivo e oportunidades para regiões periféricas.  “A arte é o motor para outros olhares, outras formas de se pensar o que é ser periférico. A arte – através dos corpos – trouxe o orgulho periférico. E depois disso, é muita história. É muito potente trabalharmos questões de raça e gênero para construir um processo de reconhecimento pois sabemos o quão é importante para nossa existência saber quem somos, de onde viemos, e o que o nosso corpo representa”, diz. 

Recursos para projetos ainda são escassos

Com temas que envolvem autorretrato, exibição de filmes e pinturas corporais, o projeto, mesmo sem apoio financeiro do Estado, já fez mais de 40 edições abertas ao público em bairros de Manaus, como Compensa, São José Operário, Coroado, Japiim, São Francisco, Mossoró e em Petrópolis. 

“O incentivo para artistas nortistas ainda é pouco. Existem apagamentos e descaso com a Amazônia e fica ainda maior quando falamos de periferias urbanas. Para conseguir manter o projeto, vendemos camisas do coletivo, tentamos parcerias, separamos um dinheiro de qualquer trabalho que conseguimos”, explica Sarah.

A falta de recursos para a cultura na região norte ganhou uma nova dimensão nos últimos meses, quando o ator indígena amazonense Adanilo, do bairro da Compensa, criticou a falta de apoio do governo do Amazonas e chegou a pedir apoio financeiro em redes sociais para custear sua viagem ao Festival de Cannes 2023, que ocorreu em maio. Adanilo representou o Amazonas com o filme “Eureka”. 

“Já pensou você ser o único amazonense a estar no maior Festival de Cinema do mundo, sendo protagonista de um filme internacional, com estrelas do mundo todo, e nem o estado e nem prefeitura te ajudarem? Já pensou? Nenhuma empresa querer te apoiar nesse acontecimento”, criticou em suas redes sociais.

A mesma realidade é encarada por Lúcio Hulame Andrade de Oliveira Junior, rapper e idealizador do projeto “Crianças do Guetto”. O projeto, que de acordo com Lúcio é sem bandeira partidária, ideológica e sem fins lucrativos, é realizado sem incentivo do governo e com doações feitas por voluntários e amigos. 

“Sou MC e artista, em 10 anos de caminhada no hip-hop vejo que ainda falta muito incentivo público. Mais políticas públicas e editais voltados para periferia e artistas periféricos, não só no rap, mas na arte hip-hop em geral. Acho que nós, como indivíduos pertencentes merecemos atenção em festivais. É difícil fazer e viver de arte, sem incentivo então”, relata. 

Criado em 2018, a iniciativa tem como objetivo levar oportunidades de lazer e educação envolvendo a cultura hip-hop para crianças e adolescentes periféricos. O Crianças do Guetto traz exibição de filmes na rua, oficinas de audiovisual, dança, música, teatro e sensibilização sobre meio ambiente e saúde bucal. 

“Essa iniciativa para crianças, adolescentes e jovens é uma forma de ter poder, é difícil mensurar o quanto a arte muda realidades na periferia. Quem vem da periferia às vezes acha que o ‘se expressar’ é fraqueza, a arte nesses momentos chega a ser uma terapia para comunidade”, explica. 

Com mais de 200 crianças em torno do projeto, o Crianças do Gueto realizou doações de cestas básicas nos anos da Covid-19, em regiões periféricas, e já recebeu doações de brinquedos, roupas e cestas básicas. Em meio à falta de incentivo público, a cidade de Manaus já teve seu plano de ação inscrito na Lei Paulo Gustavo. A expectativa é que mais de R$ 17 milhões sejam injetados na cultura de Manaus, segundo a Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa (SEC).

Já a Casa Teatro Taua Caá – nome inspirado na língua indígena Nheengatu que significa moradia na floresta – tem como objetivo levar aulas de teatro gratuita para crianças e adolescentes e já promoveu oficinas de dança, teatro de literatura. O projeto é realizado apenas com o apoio de familiares e amigos. 

“Quando comecei a fazer teatro não tinha um espaço de teatro na minha comunidade, em que as pessoas possam exercitar a arte e o corpo, se conhecer e se experimentar em cena. Na periferia não tem muita alternativa, o Estado não está presente e deveria ter um espaço de acolhimento. Por isso criei a Casa Teatro, para ser uma segunda casa para as pessoas”, comenta o idealizador do projeto Iran Lamego, professor de artes formado em teatro pela UEA e mestrando em artes cênicas.  

Entre becos e vielas, outros projetos que conseguiram acesso a financiamento também levam educação e oportunidade para jovens. Um deles é o Cine Kambô, idealizado por Kennedy Costa, que conta o apoio da Bolsa Solano Trindade, parceria entre o PerifaConnection e a PIPA, organizações conhecidas por atuarem com ações educacionais em periferias brasileiras. 

“O cine Kambô tem por objetivo realizar produção e formação audiovisual, que inclui formação técnica de equipamentos, roteirização, gravação e fotografia. Sua proposta é tornar o espaço audiovisual uma realidade na vida comunitária, com temas envolvendo o racismo e preconceito. Além de impulsionar a carreira de muitos jovens promissores e contribuir para a diminuição da desigualdade”, conta Kennedy.

“As pessoas da periferia sempre abraçam o grafite”

A arte também foi o caminho trilhado por Deborah Ere, artista há 12 anos. Natural de São Paulo, Deborah sonhava em estudar Letras, mas acabou seguindo carreira artística, e hoje, também atua como professora de artes e ensino religioso em escolas de bairros como o Morro da Liberdade e o Bairro Raiz. 

“Sinto que, em comunidades periféricas, as pessoas precisam dessa atenção maior. Na periferia é aonde o Estado menos chega, em questão de saneamento básico, tráfico, insegurança. Quando chega alguma arte, informação, cultura, a periferia sempre abraça de forma acolhedora e calorosa por ver como um presente”, relata. 

Conhecida por grafitar sereias, Deborah utiliza o grafite como ferramenta educadora dentro e fora da sala de aula. Participando de projetos como o Sarau das Manas, oficinas de grafites em universidades socioeducativas para menores infratores e em comunidades ribeirinhas. “Sempre levo grafite para sala de aula porque é a minha linguagem e por estar relacionada a realidade dessas pessoas. Esse ano, fizemos o Dia da Paz, estava rolando o boato de que ia ter massacre na escola, então essa onda de violência dentro das escolas nos mobilizou. Combinamos de ir de branco e fizemos faixas com grafites”, diz. 

Ere enxerga a educação artística como uma chance para conhecer realidades periféricas e levar a informação. “As pessoas das comunidades sempre abraçam o grafite, e é uma oportunidade para trocar uma ideia, falar sobre a intervenção urbana, sobre como a gente pode se apropriar dos espaços públicos”, conta. 

O grafite veio da periferia, que faz parte do hip hop. O hip hop por si só tem o objetivo de pacificar esses locais, as pessoas não mais guerrearem entre si, mas sim se duelarem na arte, em telas, em passos de dança, na música, na batalha de rima. Às vezes, o jovem da periferia tem muita coisa para dizer, então poder se expressar através da arte é uma coisa que proporciona autoestima”, explica Ere. 

Para Evany Nascimento, arte-educadora e professora da Universidade Estadual do Amazonas (UEA), a educação artística é uma necessidade para a sociedade, sendo um espaço para expressão. “Essa convivência tem um importante papel transformador do pensamento e das práticas cotidianas. É um exercício de sensibilidade e visão crítica do mundo. É importante lembrar que as periferias, são celeiros de grandes expressões artísticas como o hip hop, o grafite, o slam, o samba. Isso ajuda no sentido de pertencimento, na autoestima, na valorização da própria comunidade”, conta.

Segundo Nascimento, promover a arte, educação e cultura é algo que deve ser realizado pelo poder público em razão do alcance social e econômico, e o Estado deve entender como algo social e não apenas um gasto. “Quando o Governo abre editais de cultura e arte, não só esses artistas são beneficiados enquanto trabalhadores, mas toda a comunidade que vai receber a ação. Em Manaus e no Amazonas, temos muitos artistas com projetos de inserção social que fazem toda a diferença nas comunidades em que atuam. A comunidade pode e faz isso, criar seus meios de promover cultura e arte. Mas o Estado tem responsabilidade com o bem-estar do seu povo. E arte faz parte desse bem-estar”, explica.