Prontuários médicos, bulas de medicamentos, referências a manicômios e às suas pacientes, todas classificadas como “sujas”, “indecentes” ou “insubmissas”. Essa é a atmosfera central de Compêndio para moças de olhos lânguidos (Editora Urutau, 141 páginas), segundo livro da poeta, fotógrafa, atriz e professora paulistana Isabela Penov (@isabela.penov), já aclamada por seu livro de estreia, Aves Marias (ou a Revoada), publicado em 2018 pela editora Patuá. Compêndio para moças de olhos lânguidos (144 pg.) contou com o apoio do edital Rumos, do Itaú Cultural, e com publicação pela editora Urutau. O livro teve a leitura crítica realizada pela escritora gaúcha Maya Falks, preparação pela escritora carioca Deborah Dornellas e o prefácio e as orelhas assinados pela poeta cearense Nina Rizzi.
Destacando-se por sua escrita experimental, com textos que brincam com os formatos das bulas, dos prontuários e dos jargões psiquiátricos, Penov levanta a importante discussão acerca da relação entre as mulheres e a saúde mental. Compêndio para Moças de Olhos Lânguidos mostra, por exemplo, as similaridades entre a patologização excessiva e o “gaslighting”, um tipo de manipulação psicológica que induz ao outro a crença de estar “enlouquecendo”, já que sua percepção da realidade é distorcida e exagerada. Esse fenômeno é muito comum em relacionamentos abusivos.
As resenhas que a obra recebeu até o momento contam com autores de peso na literatura brasileira contemporânea, como os premiados escritores Mar Becker (autora de “A Mulher Submersa”) e Marcelo Labes (autor de “Três Porcos”) e Micheliny Verunschk (autora de “O Som do Rugido da Onça”, sendo também inspiração para a obra). “Além de forte e irretocável, o livro também é perturbador e muito bem escrito. Não há nenhum poema sobrando, nenhum penduricalho a ser retirado”, afirma Verunschk. “Esse livro é vivo, muito vivo, e tem esse destemor de mexer nessas macro e micro violências que atravessam as vidas dessas moças de olhos lânguidos. Não é uma leitura fácil, não mesmo, mas por isso mesmo é incontornável”, comenta. “Um livro que precisa ser lido.”
Mulheres, Loucura e Patriarcado: quando a violência se separa da doença?
Penov, em sua vida pessoal, revela ter passado por experiências em que o “gaslighting” e a patologização ocorreram de forma simultânea e violenta. Ao vivenciar uma relação abusiva em que chegou a acreditar estar realmente “enlouquecendo”, a autora conta que procurar ajuda médica só reforçou o estigma.
“O fato de várias mulheres da minha família terem sido taxadas de loucas ou tomarem psicotrópicos era colocado pelo médico como uma comprovação de que eu possuía uma tendência genética para a doença mental. Recebi diagnósticos diversos no período: ansiedade generalizada, TDAH, transtorno bipolar. Cada um deles se tornava argumento para me descredibilizar”, conta a autora.
Penov afirma que deixou de apresentar qualquer sintoma psiquiátrico após as experiências, entendendo a angústia pela qual passou como produto de um processo traumático que, infelizmente, reflete a realidade de muitas mulheres. E é justamente a partir dessa reflexão que surge a pergunta norteadora de Compêndio para Moças de Olhos Lânguidos: “até que ponto o patriarcado de fato enlouquece a nós, mulheres, e até onde aquilo que se chama loucura não é o nome que se dá ao desvios das normas de gênero?”
Assim, a escrita do livro se faz a partir de um longo processo de pesquisa, que traz, como referências principais, autoras como Alfonsina Storni, Anne Sexton, Alejandra Pizarnik, Ana Cristina César, Maura Lopes Cançado, Cláudia R. Sampaio, Stella do Patrocínio, Sylvia Plath e Nelly Bly, a já citada Micheliny Verunschk, — quase todas elas marcadas, de alguma forma, pelo estigma da loucura. Vale ressaltar, ainda, as trajetórias trágicas pelas quais algumas passaram, que envolvem relações abusivas, internações forçadas e, até mesmo, o suicídio. O livro contou, ainda, com a leitura crítica de Maya Falks, escritora gaúcha bastante vocal sobre a temática da saúde mental.
Para além das referências literárias, Compêndio para Moças de Olhos Lânguidos também tem embasamento nas obras A História da Loucura, de Michel Foucault, e Complexo de Cassandra, de Laurie Schapira, bem como no trabalho da psicóloga Valeska Zanello sobre saúde mental e dispositivos de gênero.
Isabela Penov: a escrita como o seu jeito de brincar
Isabela Penov nasceu em 1986, em São Paulo, capital. É feminista, macumbeira e comunista. Entende-se como poeta desde que aprendeu a ler e a escrever, e sempre se interessou por diversas outras linguagens artísticas. Segundo ela, esse era o seu “jeito de brincar”.
Ao longo da vida, aventurou-se pelo canto, pelo violão, pelo palco e pela fotografia. É formada em Arte e Teatro pela UNESP e, há mais de 10 anos dá aulas de Artes e Teatro em escolas públicas e particulares de São Paulo. Hoje, cursa pós-graduação em Literatura, Arte e Filosofia pela PUC-RS.
Até o momento, tem dois livros publicados: Aves Marias (ou A Revoada), que saiu pela Editora Patuá, em 2018, e Compêndio para Moças de Olhos Lânguidos, que saiu pela Editora Urutau em 2022, realizado com o apoio do Rumos, do Itaú Cultural.
Em relação a projetos futuros, Penov afirma que atualmente trabalha em seu terceiro livro, Eu Sinto que Nasci para o Pecado, que sairá pelo Selo Manga Rosa com apoio do ProAC – Programa de Ação Cultural do estado de São Paulo. Intitulado a partir de um verso da poeta Gilka Machado, primeira mulher a escrever e publicar poesia erótica no Brasil, o livro busca explorar o erotismo a partir dos eixos da morte, do êxtase espiritual e do protagonismo do corpo feminino.
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