A Justiça Federal determinou que o estado do Amazonas implemente o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura no prazo de 90 dias. Entre as funções do órgão está o enfrentamento dessa forma de violência no sistema penitenciário amazonense. Por isso, ele deverá contar com estrutura, recursos orçamentários e número de cargos suficientes para realizar visitas periódicas – no mínimo, anuais – a todas as unidades prisionais e locais de custódia do estado. A sentença atende a pedidos feitos pelo Ministério Público Federal (MPF) em ação civil pública ajuizada no ano passado.
Mecanismos estaduais como esse fazem parte do Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, instituído pela Lei 12.847/2013 com o objetivo de erradicar no país este tipo de conduta criminosa e outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. Porém, apesar de a legislação prever a criação do órgão, passados quase dez anos, nunca foi implementada no Amazonas a estrutura local para prevenir e combater a tortura e outras violações de direitos no sistema penitenciário.
“Por ocasião da audiência de conciliação, o estado do Amazonas se comprometeu a juntar documentos sobre o andamento do processo administrativo para instalação do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura. (…) Contudo, até o momento, não há notícia nos autos da implementação desse importante Mecanismo. Ressalte-se que a Lei que criou o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura é do ano de 2013; ou seja, já são quase dez anos de edição da lei sem que o estado do Amazonas tenha criado o seu Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura”, destaca a Justiça Federal na sentença.
Panorama carcerário no estado – Os problemas no sistema prisional amazonense incluem superlotação e episódios de violência. Em 2017, foram assassinadas 56 pessoas no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj). Uma nova chacina ocorreu em 2019, com mais de 55 mortos em três unidades prisionais de Manaus. Segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional, nesta época, havia 12.069 pessoas privadas de liberdade para apenas 3.511 vagas oferecidas pelo estado.
Inspeções realizadas pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura apontaram problemas no modelo de terceirização, recomendando a mudança imediata da forma de gestão do sistema penitenciário, o que não foi acatado pelo governo estadual. Segundo o relatório, a falta de controle pelo poder público culminou no domínio de facções dentro dos estabelecimentos prisionais. As vistorias registraram ainda desassistência em saúde, insuficiência contratual em relação ao número de refeições distribuídas e indício de assédio contra os profissionais terceirizados.
As violências não se limitam à capital amazonense. Em 2021, inspeção do MPF e outros órgãos na delegacia de São Gabriel da Cachoeira, por exemplo, verificou superlotação e falta de itens de higiene. Apontou ainda relatos de agressões físicas e tortura a partir de intervenções da Polícia Militar, que realizaria, de forma truculenta, inspeção nas celas.
A estruturação de um mecanismo estadual para o enfrentamento destas práticas no sistema penitenciário amazonense já havia sido apontada como fundamental pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura em 2019. Em 2022, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em seu relatório de inspeções dos estabelecimentos prisionais do Amazonas, também constatou a necessidade urgente de criação do órgão para fiscalizar e resolver os problemas que existem nas unidades. O CNJ recomendou ao Executivo estadual e à Assembleia Legislativa amazonense a criação e a rápida aprovação de projeto de lei nesse sentido, o que não foi feito até o momento.
Prevenção e combate à tortura – Além dos mecanismos estaduais, o sistema nacional é formado pelo Comitê Nacional e pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, que deve, entre outras atribuições, monitorar as condições da população carcerária, por meio de vistorias aos estabelecimentos prisionais, além de expedir recomendações. Localmente, há ainda o Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, que atua em colaboração com os órgãos nacionais.
No Amazonas, o comitê foi criado em 2016 e está sob responsabilidade da Secretaria de Estado de Justiça, Direitos Humanos e Cidadania (Sejusc). Contudo, o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura nunca foi implementado, sob o argumento de falta de recursos financeiros. A ausência de iniciativa da administração local para criar o órgão amazonense levou o MPF a recorrer ao Poder Judiciário.
A determinação judicial para a criação do mecanismo foi proferida menos de um ano após o ajuizamento da ação pelo MPF, em 31 de março de 2022. A data marca o aniversário do golpe que deu início a uma ditadura de 21 anos no Brasil, caracterizada pela violação de direitos e liberdades individuais. O período também foi conhecido pela utilização de métodos de violência física e psicológica por agentes do Estado, e a prática da tortura foi uma das ferramentas mais utilizadas para repressão aos opositores do regime.
“O 31 de março é uma data relevante para o combate à tortura no país. Hoje, 59 anos após a ditadura militar ter sido instituída, em 1964, celebramos a futura criação deste importante mecanismo de combate a tais condutas criminosas no Amazonas, para que práticas como as vivenciadas durante o regime militar deixem de se repetir em nosso estado”, ressaltou a procuradora da República Michèle Diz y Gil Corbi, autora da ação.
Com a determinação judicial, o estado do Amazonas tem 90 dias para instaurar o mecanismo estadual a contar da data de sua intimação. Em caso de descumprimento, a Administração estadual deverá pagar multa de R$ 100 mil.
A partir da sentença, o MPF analisa as medidas judiciais e extrajudiciais a serem adotadas, incluindo assegurar que o Estado do Amazonas cumpra o prazo determinado pela Justiça.
Inicial da ação civil pública 1006388-65.2022.4.01.3200
Com informações do Observatório Manaus.
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